Para os que não lembram da sua origem, a lei de Gerson surgiu na década de 70 quando Gerson, o famoso jogador de futebol, foi garoto propaganda da marca de cigarros Vila Rica e disse a icônica frase: “Eu gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve você também!”
A citação de Gerson sintetizou de uma vez só o jeitinho brasileiro de fazer o errado parecer certo. A partir dali, querer levar vantagem contaminou os discursos, as relações e ações do povo brasileiro. Enraizada na cultura popular, virou sinônimo de levar vantagem acima de tudo, sem respeitar códigos éticos ou morais. Imagino qual teria sido a repercussão deste comercial se ele tivesse sido veiculado atualmente.
A nova cultura do cancelamento – este movimento que tem força principalmente nas redes sociais – cancela rapidamente atitudes inadequadas sobretudo do ponto de vista ideológico ou comportamental. Como definição, “a cultura de cancelamento é a iniciativa de conscientização e interrupção do apoio a um artista, um político, uma empresa, um produto ou personalidade púbica devido à demonstração de algum tipo de postura considerada inaceitável”. Mobilizar é bem mais rápido nos dias de hoje, onde o acesso às mídias sociais é democrático e todos podem ser virtualmente autores, editores, divulgadores, críticos e afins.
Tanto Gerson quanto a equipe que criou o comercial comentaram que houve erro de interpretação; queriam na realidade dizer que “levar vantagem não é passar ninguém para trás, é chegar na frente”. Mas não foi assim que a mensagem foi entendida, replicada e vivida. Virou estímulo a comportamentos antiéticos acompanhados de sorrisos discretamente irônicos e piscadelas de cumplicidade. Não que já não houvessem condutas assim, mas ele batizou um conjunto de características contraproducentes dos brasileiros. Temos orgulho no nosso jogo de cintura, da capacidade de adaptação, da criatividade abundante para solucionar problemas inesperados. Entretanto, como os abusos das nossas competências positivas podem se transformar em comportamentos indevidos? A questão está neste caminho da criatividade à corrupção. O certo deveria ser certo mesmo quando ninguém está vendo, o errado é errado mesmo que todos estejam fazendo.
Utopia, será?
Meu sonho? Ver a Lei de Gerson cancelada. Minha esperança? A substituição pela Lei do Covid.
A chegada do Covid19 nos convida a novos comportamentos mais elevados, mais empáticos, existenciais. A pandemia expôs largamente a nossa vulnerabilidade como sociedade, empresa e indivíduos; nos igualou como seres humanos. Classes sociais, cargos, regiões foram todos atingidos por um vírus nada discriminatório. Ele trouxe uma nova regra de priorização para todos: a vida em primeiro lugar. Negócios, processos, sistemas, tecnologia, produtos devem estar à favor das pessoas e não, o contrário.
A pandemia nos impulsionou para uma visão mais coletiva, afinal a falta de saúde do outro pode me atingir, então o outro importa. Sempre importou na realidade, mas agora, a velocidade imperativa da interdependência plural está escancarada. Uma economia pós-pandemia demanda cuidado com a desigualdade social.
Muitos alegam que a lei de Gerson foi fortalecida justamente pela falta de acesso das classes mais carentes a recursos básicos para moradia, ilustrada, por exemplo, pelo famoso “gato”, a ligação para se obter energia elétrica clandestinamente. O atual home office inclusive tem significados diferentes para cada composição familiar. Outros diriam que a ética e valores nobres independem de condição qualquer.
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Como então evoluir para uma cultura de coletividade e ética se, individualmente, tantos estão desesperançados buscando a própria subsistência neste contexto de atividades econômicas tão dramaticamente reduzidas? Queremos e precisamos de senso de pertencimento, mas como fazer a transformação cultural de uma nação vivendo a pior crise social em décadas, com milhões de pessoas passando por desemprego e pobreza? Queremos de verdade confrontar crenças e realizar mudanças significativas e construir um futuro melhor?
Questões complexas não são resolvidas de forma simples, mas a crise estimula a conscientização e induz a novos hábitos. A transformação pode começar com pequenos sinais e comportamentos daquilo que pode ser multiplicado – graças, por exemplo, ao neurônio espelho, que, segundo o neurocientista Giacomo Rizzolatti, nos permite simular a perspectiva do outro a partir da compreensão das suas emoções e assim, imitar o seu comportamento.
O novo contágio deveria ser a prática da solidariedade. Afinal a dor é comum a todos, compreendida por um nome e sobrenome conhecidos e chegando mais perto de nós a cada dia.
É hora de exercer a empatia, acompanhada do senso moral, justiça, altruísmo e da cooperação.
O novo “jeitinho brasileiro” clama pela colaboração recíproca, o interesse genuíno pelo próximo, a ação prática de cuidar e acolher-nos mutuamente.
Que possamos juntos edificar um país onde a consciência coletiva se sobreponha de fato à individual, com relacionamentos de confiança, com uma economia mais sustentável, uma vida em sociedade mais simples. Onde a relevância esteja no essencial, e não mais, no consumismo desenfreado, no supérfluo, no excesso, na vantagem individual. Menos é mais. Integridade, valores e princípios coletivos importam.