Em decisão proferida no último dia 11 de junho, o Tribunal de Justiça de São Paulo autorizou a exclusão de um sócio acusado de assédio sexual, ainda que a deliberação tomada pelos sócios para sua exclusão não tenha cumprido integralmente os procedimentos estabelecidos no respectivo contrato social.
A cláusula societária previa, cumulativamente, maioria de capital e voto por cabeça. Apenas o critério percentual foi atendido. Ainda assim, a exclusão foi validada. Mais do que um caso isolado, o julgamento evidencia um ponto de tensão que se torna cada vez mais relevante: o conflito entre o respeito absoluto à forma versus a necessidade de resposta efetiva a condutas que violam a dignidade humana.
A exclusão de sócio não é medida ordinária. Implica restrições relevantes a direitos patrimoniais e políticos, e por isso deve ser submetida a critérios claros.
Mas quando esses critérios se convertem em blindagem para comportamentos incompatíveis com o que se espera de quem compartilha poder e espaço em uma sociedade, o que está em jogo não é apenas a letra do contrato, mas a integridade da própria estrutura societária. Os bens jurídicos tutelado precisam ser sopesados e priorizados.
Não há dúvida de que o direito societário tem por fundamento a autonomia privada. Mas autonomia alguma é absoluta. Toda estrutura jurídica, inclusive a societária, opera dentro de um ordenamento que coloca limites quando a liberdade contratual ameaça comprometer valores fundamentais da convivência civilizada.
A dignidade da pessoa humana, a integridade física e emocional dos integrantes do quadro social e demais colaboradores, e o respeito às condições mínimas de trabalho e convivência devem ser cláusulas implícitas em qualquer contrato. Quando violadas, a omissão institucional não pode ser escudada na ausência de quórum.
Assédio e impacto na governança
Casos de assédio sexual, especialmente quando cometidos por sócios, administradores ou dirigentes, colocam a governança à prova.
São condutas que não apenas ferem quem as sofre, mas desorganizam o ambiente de trabalho, contaminam a cultura da empresa e impõem custos emocionais e reputacionais que nenhuma cláusula contratual pode conter. Onde não há resposta adequada, a impunidade se institucionaliza, e a empresa se torna ambiente inseguro para todos.
O argumento de que a exclusão só se justificaria com o preenchimento estrito dos requisitos contratuais revela uma visão de governança alicerçada exclusivamente na forma, descolada da substância. Mas a governança não é apenas o cumprimento ritual dos instrumentos sociais. É, sobretudo, a construção de um ambiente de confiança, de segurança psicológica e de respeito entre os que compartilham poder, trabalho e patrimônio.
Cultura organizacional e prevenção
É nesse sentido que se impõe uma revisão urgente da forma como as empresas, sobretudo as sociedades fechadas, familiares ou de capital concentrado, enfrentam condutas que violam direitos fundamentais. Em um sistema minimamente comprometido com a integridade das relações empresariais, o contrato social não pode ser usado como trincheira contra quem denuncia, nem como abrigo para quem abusa.
Isso exige a institucionalização de políticas de conduta, mecanismos de apuração e, acima de tudo, coragem para enfrentar o desconforto. As empresas precisam criar canais efetivos de denúncia, com possibilidade de anonimato, proteção contra retaliações e mecanismos minimamente técnicos de investigação.
Mais do que regras formais, é preciso estabelecer um pacto de cultura organizacional que valorize o respeito e que afaste qualquer tipo de comportamento abusivo do círculo de comando.
Não se trata apenas de preservar a imagem da empresa, nem de reduzir exposição a litígios. Trata-se de proteger a integridade psíquica, emocional e profissional de pessoas em posição de vulnerabilidade.
Trata-se de preservar a própria legitimidade do exercício do poder societário. O sócio que age com abuso, que se vale de sua posição para constranger, silenciar ou violar, deslegitima a função que exerce. E a sociedade que mantém esse sócio em nome da “segurança jurídica” perde autoridade moral para exigir condutas éticas de seus colaboradores.
A legalidade não pode ser confundida com conivência. A previsibilidade contratual não pode ser argumento para paralisia diante do abuso. E a governança que ignora a dimensão humana das relações de poder se transforma em caricatura daquilo que deveria proteger. Nenhuma cláusula contratual, ou ausência de cláusulas contratuais, justifica a permanência de um agressor no quadro social. Nenhum quórum deliberativo pode se sobrepor à obrigação de preservar a dignidade de quem integra o ambiente empresarial.
TJ-SP valida exclusão de sócio acusado de assédio e reforça prevalência da dignidade sobre formalidades contratuais
A dificuldade em investigar e punir condutas praticadas por sócios, sobretudo quando se trata de figuras mais antigas nas organizações, é uma das grandes barreiras silenciosas enfrentadas pelas empresas. Nesses casos, o poder simbólico acumulado ao longo dos anos se torna um escudo contra a responsabilização.
Por isso, o recente precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo marca não apenas um posicionamento jurídico relevante, mas um avanço cultural, ao reconhecer que a proteção à dignidade humana, mesmo dentro das estruturas privadas, deve prevalecer sobre pactos formais que se tornaram obstáculos à justiça.
Se as estruturas jurídicas não estiverem preparadas para dar resposta a esse tipo de conduta, serão engolidas por sua própria inércia. O silêncio institucional tem custo. E o custo, nesse caso, não é apenas reputacional ou financeiro. É ético. É estrutural. É humano.
Amanda Salis Guazzelli e Diego Billi Falcão, sócios do do escritório Huck Otranto Camargo Advogados. e fundadores da Governança AGRO
Mini CV: Diego Billi Falcão formou-se em Direito pela Universidade de São Paulo, com especialização em direito empresarial. Mestre em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo, tendo recebido o título com distinção. Especialização em avaliação de empresas pelo Insper.
Atuação há 20 anos em direito empresarial e contratos, com ênfase em fusões e aquisições (M&A), planejamento sucessório e patrimonial, reestruturação de dívidas e litígios societários. Membro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Fundador da Governança Agro, focada em temas de governança familiar, patrimonial e corporativa para empresas do agronegócio e sócio do escritório Huck Otranto Camargo Advogados.
Participa ativamente, como convidado, de palestras, mentorias, aulas e podcast, para tratar de temas de governança e planejamento sucessório e patrimonial. Autor da obra Interlocking Board – aspectos societários da interligação administrativa (Editora Quartier Latin, 2016). Associado ao Instituto Brasileiro de Governança Corporativa.
Mini CV: Amanda Salis Guazzelli. advogada há 15 anos, dedicando-se especialmente a governança corporativa, planejamentos sucessórios e contratos. Graduada pela UFRGS (2009), mestre pela USP (2013). MBA Executivo em Economia e Gestão do Agronegócio pela FGV (2018). Fundadora da Governança Agro, focada em temas de governança familiar, patrimonial e corporativa para empresas do agronegócio e sócia do escritório Huck Otranto Camargo Advogados.
Participa ativamente, como convidada, de palestras, mentorias, aulas e podcast, para tratar de temas de governança e planejamento sucessório e patrimonial. Associada ao Comitê de Direito de Agronegócio do Ibrademp – Instituto Brasileiro de Direito Empresarial, e ao Comitê de Imóvel Rural e Contratos Agrários do Ibradim – Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário. Monitora do curso de pós-graduação de direito do agronegócio e bioeconomia da FGV.