Desde 2003, as escolas de todo o Brasil estão obrigadas a incluir em seus currículos o ensino de história e cultura afro-brasileira, conforme a legislação que visa valorizar as contribuições dos povos africanos à formação cultural do país. Apesar dos avanços, questões relacionadas à religião e à falta de diálogo continuam a representar desafios, mesmo após mais de 20 anos de implementação da lei.
Recentemente, um episódio ocorrido em uma escola pública de São Paulo expôs essas dificuldades. Durante o mês da Consciência Negra, um pai chamou a polícia porque sua filha havia feito um desenho de orixá como parte de uma atividade escolar. O episódio gerou críticas por parte de pais, comunidade escolar e políticos, evidenciando o quanto o tema ainda causa desconforto em algumas famílias.
Ações e materiais pedagógicos
Para atender à legislação, a rede pública de ensino da capital paulista tem investido em materiais didáticos com temáticas étnico-raciais. Em 2022, a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo adquiriu 700 mil exemplares de livros, que incluem obras infantis, juvenis e adultas, voltados para a valorização da cultura afro-brasileira.
Além disso, as escolas passam por processos formativos, com documentos de referência como o “Orientações Pedagógicas: Povos Afro-brasileiros”, que trazem diretrizes para a implementação de práticas de ensino que valorizem as histórias e culturas afro-brasileiras, indígenas e migrantes. De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, essas ações são acompanhadas pelo Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NEER), que apoia as unidades educacionais na implementação de práticas antirracistas.
No âmbito estadual, o Programa Multiplica Educação Antirracista tem oferecido formação para os professores desde 2024. A formação abrange temas como cultura e religiosidade africanas, e até o momento, 6,8 mil docentes participaram desse programa.
A Secretaria Estadual de Educação (Seduc-SP) reforça que essas iniciativas garantem que os conteúdos sobre a cultura afro-brasileira se tornem parte essencial da formação histórica e cultural dos alunos, ao integrar os temas ao currículo escolar.
O ensino da cultura afro-brasileira nas escolas
A professora Núbia Esteves, que leciona geografia na EMEF Solano Trindade, no Jardim Boa Vista, zona oeste de São Paulo, é uma das educadoras que tem contribuído para a implementação dessa política. Premiada pelo seu trabalho na preservação da memória escolar e comunitária, ela integra o ensino da cultura afrodescendente em suas aulas de geografia e em projetos interdisciplinares.
Em suas aulas, a professora Núbia aborda a mitologia africana de maneira cultural, não religiosa. “Eu não trabalho religião. Eu trabalho os orixás fora da questão religiosa, considerando a questão cultural. Abordo os arquétipos culturais e a mitologia de maneira comparada”, explica. Ela explica como, por exemplo, a deusa Iansã, dos orixás, tem semelhanças com a figura de Atena, na mitologia grega, ou como Oxum pode ser comparada a Afrodite, deusa do amor na mitologia romana.
A professora utiliza uma abordagem que combina literatura, quadrinhos e registros audiovisuais. “Eu levo os alunos a fazerem quadrinhos sobre os orixás, comparando-os com outras figuras mitológicas, como deuses gregos. Isso ajuda a trabalhar a questão cultural de uma maneira mais acessível”, afirma. Além disso, ela realiza rodas de conversa em sala de aula para refletir sobre ética, convivência e valores individuais.
Desafios e resistência
Apesar de seu trabalho inovador e respeitado, Núbia Esteves já foi questionada por alunos sobre o caráter religioso de suas aulas. Em sua resposta, ela deixa claro que não se trata de ensinar religião, mas sim de apresentar a cultura africana como parte da história, da arte e da formação do Brasil. “Eu explico que, assim como a escola ensina mitologia grega, lendas indígenas ou festas populares, também podemos estudar os símbolos africanos. Esses símbolos são parte da nossa herança cultural”, afirma.
A professora destaca ainda a importância de conhecer as culturas de diferentes povos para “descolonizar” o pensamento e combater o racismo. “Ao estudarmos essas culturas, desmistificamos preconceitos e promovemos um ambiente mais inclusivo”, conclui.
Embora haja um movimento crescente para promover a educação antirracista nas escolas, ainda persiste uma resistência em alguns setores da sociedade, especialmente no que se refere à religiosidade afro-brasileira. A implementação plena do ensino da história e cultura afro-brasileira continua sendo um desafio, mas a educação tem se mostrado um caminho essencial para a desconstrução de preconceitos e para a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária.
com informação agência Brasil.






















