O mundo passa por momento complicado pelo surto epidêmico causado pelo “coronavirus”. Em decorrência disso, muitas pessoas suspenderam planos de viagem até que a situação melhore, o que gera enorme impacto para a indústria do transporte aéreo.
O risco de contaminação em viagens aéreas não é desprezível e deve ser objeto de preocupação por parte dos operadores aéreos (aeroportos, empresas de limpeza, fornecedores de catering, companhias aéreas etc.). Tal situação gera grandes questionamentos acerca da responsabilidade jurídica de tais empresas.
No âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi editado o “Regulamento Sanitário Internacional” (RSI), que, por ter caráter de norma de Direito Internacional Público, deve ser observado por todos os países que não explicitamente optaram por não se vincular ao referido diploma.
De acordo com o seu texto, cada país deverá ter um chamado “ponto focal nacional” que será o órgão responsável pela implementação das medidas sanitárias previstas no RSI.
Com base no artigo 20 da RSI, cada país membro designará portos e aeroportos que deverão desenvolver capacidades para vigiar, reportar, verificar, notificar e colaborar em caso de epidemias. Assim, com base no RSI, todos os países membros deverão estar preparados para casos de surtos epidemiológicos como é caso recente do cronavírus.
No que diz respeito aos operadores aéreos, a OMS editou, sem caráter vinculante, o documento chamado de “Guide to Hygiene and Sanitation in Aviation” (GHSA). Tal documento é importantíssimo por vários motivos.
Em primeiro lugar, traz, mesmo sem ter caráter vinculante, padrões mínimos de higiene a serem adotados por todos os operadores aéreos ao redor do mundo.
Em segundo lugar, se seguido, ajudará a reduzir risco de contaminação em casos de epidemias similares à do coronavírus.
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Em terceiro lugar, por trazer padrões mínimos, quem deixar de segui-los, corre o risco de ser processado civil e criminalmente, por agir negligentemente no que diz respeito à saúde pública.
Os padrões mínimos criados culminam não por balizar o máximo a ser feito pelos operadores aéreos, mas o mínimo. Afinal de contas, o Código Penal Brasileiro tipifica como crime “infringir determinação do poder púbico, destinada a impedir introdução e propagação de doença contagiosa” (art. 268). A OMS baixa diretrizes a serem observadas pelo Governo Brasileiro e que não podem deixar de ser amplamente aplicadas em território nacional.
Dentre as principais medidas apontadas no GHSA, podem ser citadas:
(i) ajustar programas de limpeza de rotina, se houver risco à saúde pública;
(ii) durante períodos de alto volume de passageiros em aeroportos, deve-se aumentar a frequência de limpeza para remover a acumulação excessiva de resíduos e detritos;
(iii) deve ser feita constante limpeza de precaução, incluindo o uso de produtos desinfetantes adequados. Especificamente em relação às companhias aéreas, os seguintes pontos devem ser observados:
(iv) programas de limpeza de rotina da aeronaves devem ser ajustados quando se detectar risco à saúde pública;
(v) limpeza por precaução de certas áreas específicas da aeronave, incluindo-se o uso de desinfetantes. O Anexo F do GHSA, inclusive, sugere a implantação de uma rotina de limpeza que inclui itens a serem limpos e a frequência da limpeza e desinfecção.
Na publicação “Preventing Spread of Disease on Commercial Aircraft: Guidance for Cabin Crew”, editada pelo United States Centers for Disease Control and Prevention, foram feitas recomendações de adoção de várias medidas profiláticas pela tripulação, dentre as quais destacam-se:
(i) lavar as mãos frequentemente com água e sabão;
(ii) usar desinfetante para as mãos à base de álcool;
(iii) identificar viajantes doentes que se encaixem nos sintomas de doenças contagiosas;
(iv) se possível, separar a pessoa doente dos demais passageiros;
(v) oferecer máscara, se disponível e se as pessoas doentes puderem usá-las.
Note-se, contudo, que mesmo com todo o risco de contaminação existente, se as instalações aeroportuárias e as aeronaves forem adequadamente limpas e desinfetadas, e o pessoal envolvido (tripulação, catering, equipes de limpeza etc.) for diligente e seguir os protocolos existentes, o risco de contaminação normalmente cai sobremaneira.
Passe-se a analisar, agora, qual o papel que o ar condicionado pode ter no processo de contaminação pelo coronavírus (e outras doenças semelhantes). Nos primeiros aviões a jato, praticamente não ocorria a reciclagem do ar interno das cabines. Já nos jatos modernos, aproximadamente 50% do ar da cabine é reciclado, o que aumenta a umidade do ar interno e reduz o consumo de combustível.
O ar da cabine de passageiros é completamente trocado a cada 3 minutos, sendo esta uma taxa de fluxo muito maior do que as pessoas experimentam em outros ambientes internos e significa que os passageiros recebem cerca de 60 a 80 vezes mais ar do que precisam para respirar.
A parcela de ar que é reciclada passa por filtros extremamente eficientes e que removem partículas até do tamanho de bactérias microscópicas e grupos de vírus, com uma eficiência maior do que 99,99%. Testes demonstram que o ar atende aos padrões estabelecidos para as salas de cirurgia em hospitais, e a AIRBUS considera que tais filtros capturam o coronavírus com eficiência extremamente alta.
Em suma, o problema maior não está com a circulação interna de ar nas aeronaves, mas com o comportamento das pessoas. Aeronaves bem limpas e desinfectadas, dentro dos padrões internacionais de higiene e limpeza podem ajudar a prevenir a transmissão do coronavírus durante os voos. A inobservância de tais padrões não só coloca em risco a vida dos passageiros, mas pode ensejar responsabilização civil e criminal de operadores aéreos.
Marcus Vinícius De Grandis Puchalski é comandante, instrutor de aeronaves Boeing e Airbus, e piloto de linha aérea. Voou pelas companhias Varig, Embraer, RyanAir, WebJet, FlyDubai, entre outras. Pós graduado em transporte aéreo e aeroportos pelo ITA.
Marcelo Godke é sócio de Godke Advogados. Mestre em direito pela Columbia University. Mestre em direito pela Universiteit Leiden. Professor do CEU Law School, do Insper e da FAAP.