Mais da metade dos domicílios brasileiros (55,2%), ou seja, mais de 116,8 milhões de pessoas, conviveram com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020 e 9% deles vivenciaram insegurança alimentar grave, o que significa que 19 milhões de brasileiros passaram fome.
Isso é o dobro do que fora registrado em 2009, e representa um regresso ao nível observado em 2004, quase um ano após o lançamento do programa Fome Zero.
É o que revela o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, lançado nesta segunda-feira, 5 de abril.
Acesse a pesquisa na íntegra: olheparaafome.com.br .
As informações correspondem aos três meses anteriores à coleta de dados, entre os dias 5 e 24 dezembro de 2020, em amostra representativa de 2.180 domicílios das cinco regiões brasileiras, em áreas rurais e urbanas.
A pesquisa é conduzida pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), constituída por pesquisadores, professores, estudantes e profissionais, com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria da ActionAid Brasil, da Fundação Friedrich Ebert Stiftung e da Oxfam Brasil.
Essa pesquisa foi realizada justamente no período em que o Auxílio Emergencial, concedido a 68 milhões de brasileiros, tinha sido reduzido pela metade (de R$ 600 mensais para R$ 300 mensais). Em 2021, de janeiro a março, a população que vinha sendo atendida pelo auxílio ficou sem o amparo.
Uma nova rodada começará a ser paga nos próximos dias, mas para um público mais restrito e em valores ainda menores: variam de R$ 375 (para famílias chefiadas por mulheres) a R$ 150 (para quem mora sozinho).
“Com a diminuição do Auxílio Emergencial e a falta de clareza sobre quem irá, de fato, recebê-lo, o país deve persistir num grave quadro de insegurança alimentar. A forma com que os governos vêm lidando com as crises econômica e política dos últimos anos, sobreposta à pandemia da Covid-19, geraram impactos negativos profundos no direito humano à alimentação adequada e saudável do povo brasileiro”, afirma Ana Maria Segall, médica epidemiologista e pesquisadora da Rede PENSSAN.
Destaques da pesquisa
Nesse período da pandemia, a fome se fez mais presente justamente entre as famílias com menor renda familiar per capita.
É notável que a insegurança alimentar moderada e grave desaparece em domicílios com renda familiar mensal acima de um salário mínimo por pessoa. Mais de ¾ desse grupo (76,6%) está em condições de segurança alimentar.
Número que cai drasticamente para 47,6% para quem tem renda familiar per capita mensal de meio a um salário mínimo.
O estudo evidencia uma relação entre segurança alimentar e gênero. Existe fome em 11,1% dos domicílios chefiados por mulheres, e outros 15,9% enfrentam insegurança alimentar moderada.
Quando a pessoa de referência é um homem, os números são menores: a fome atinge 7,7% dos domicílios, e outros 7,7% estão na situação de insegurança alimentar moderada.
Há, também, uma forte ligação entre fome e cor da pele. Pessoas pretas ou pardas enfrentam insegurança alimentar grave – ou seja, passam fome – em 10,7% dos domicílios.
O percentual é de 7,5% em domicílios de pessoas de raça/cor da pele branca. A insegurança alimentar moderada também revela esse desequilíbrio: 13,7% para pessoas de raça/cor da pele preta ou parda, e 8,9% para pessoas de raça/cor da pele branca.
As desigualdades foram percebidas, também, entre as diferentes regiões do Brasil. No Norte e no Nordeste, a fome chega a, respectivamente, 18,1% e 13,8% dos domicílios.
Esses percentuais não chegam a 7% nas demais regiões do país, e superam o dado de 9% referente a todo território nacional. Passa-se mais fome no Norte e Nordeste do que em outras regiões.
No campo, os índices de fome são maiores – a pesquisa indicou que a insegurança alimentar grave alcançou 12% dos domicílios na área rural, contra 8,5% em área urbana.
A vulnerabilidade acompanha quem tem menor acesso à água potável. Nas áreas rurais, a proporção de domicílios classificados em situação de insegurança alimentar grave dobra quando não há disponibilidade adequada de água para a produção de alimentos (21,1% para 44,2%).
Mas não foram só os mais pobres que foram impactados pela insegurança alimentar durante a pandemia. Comparada aos dados do IBGE de 2018, a pesquisa aponta que apenas dois anos depois, em 2020, a proporção de domicílios em situação de insegurança alimentar leve quase dobrou, passando de 20,7% para 34,7%, mostrando que a classe média não foi poupada dos efeitos da pandemia.
“Era previsível que a comida, tanto sua disponibilidade como o acesso a ela, viesse a ocupar o centro das preocupações e urgências no contexto de pandemia pela qual estamos passando, ao lado, e como complemento indispensável, dos cuidados com a saúde das pessoas infectadas, ou não, pelo vírus mais recente”, explica Renato Maluf, Coordenador da Rede PENSSAN.
Sobre a Rede PENSSAN
A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), criada em 2012, congrega pesquisadoras(es), professores, estudantes e profissionais de todo o país na forma de uma rede de pesquisa e intercâmbio científico independente e autônoma em relação a governos, partidos políticos, organismos nacionais e internacionais e interesses privados.
Uma organização sem fins lucrativos e que tem entre seus objetivos o exercício de uma pesquisa cidadã comprometida com a erradicação da fome e a promoção da soberania alimentar e nutricional, tendo o direito humano à alimentação adequada como diretriz.
A rede busca contribuir para o debate público de ações e políticas que tenham interação com a Segurança Alimentar e Nutricional da população brasileira.