A notícia do suicídio do ex-presidente do Peru, Alan García, na semana passada, em função da decretação de sua prisão por suposto recebimento de propina da construtora brasileira Odebrecht foi o episódio mais dramático da última semana.
O caso foi desencadeado pela série de investigações anticorrupção conduzida pelo Ministério Público peruano e que já levou o ex-presidente Ollanta Humala à prisão além do cerco aos também ex-presidentes Alejandro Toledo e Pedro Pablo Kuczynski, bem como de várias outras personalidades do mundo empresarial e político do país andino.
Num plano maior, vale lembrar que as relações do Brasil com o Peru já produziram páginas mais nobres tendo sido o primeiro país com o qual o Brasil concluiu negociações para delimitação de fronteira, em 1851 e, ao longo do século 20, reiteradamente se fez presente em planos de diferentes estrategistas brasileiros em função de sua posição geográfica, qual seja, a de ser banhado pelo Oceano Pacífico. Tal condição desde muito é vista pelo Brasil como uma oportunidade de acesso encurtado ao cobiçado mercado asiático.
E foi embalado por esses planos estratégicos que entre 2005 e 2010 se deu a construção da Rodovia Interoceânica que, por meio de 2,6 mil quilômetros de estrada, realizou a ligação do noroeste do Brasil ao litoral sul do Peru, tendo por principal propósito o escoamento de produtos brasileiros, especialmente a soja, até portos peruanos e posterior embarque para destinos no continente asiático.
Com a economia brasileira em boa fase e políticas governamentais orientadas para a integração regional, a expansão do comércio exterior e o incremento da internacionalização de empresas brasileiras, o projeto desde muito acalentado ganhou em 2005 efetividade. E foi a poderosa Odebrecht quem ganhou as licitações para construção da maior parte da rodovia.
A relação da Odebrecht com o Peru também já havia produzido algumas páginas de história, afinal fora no Peru que a empresa iniciou, em 1979, seu processo de internacionalização, construindo a Hidrelétrica Charcani V.
Mas, infelizmente, o que levou na semana passada os principais jornais dos dois países a mais uma vez dedicarem páginas para esses relacionamentos não foi a excelência em serviços de engenharia e construção civil da gigante brasileira que gera 58 mil empregos diretos, realiza obras em 14 países e exporta para outros 100.
Nem tampouco o dinamismo da economia do país andino com população de 31 milhões de habitantes, PIB de US$ 211 bilhões e tido como um dos mais liberais em economia na América do Sul, mas sim a promiscuidade de agentes públicos e privados, nacionais e estrangeiros, no manejo do dinheiro público para a realização de projetos de infraestrutura.
Até pouco tempo atrás, a Odebrecht era tratada como um caso de sucesso, estudada por pesquisadores especialmente das áreas de Administração e Engenharia, tendo inspirado dissertações, teses, capítulos de livros e artigos, sob o tema geral da formação e evolução das grandes empresas brasileiras, bem como abordagens mais específicas como a de sua estrutura organizacional, processos de gestão de conhecimento, internacionalização da empresa, entre outros.
Sobre o desenvolvimento da estrutura organizacional da Odebrecht a empresa chegou a constituir e divulgar a TEO (Tecnologia Empresarial Odebrecht) como “um conjunto de princípios, conceitos e critérios, com foco na educação e no trabalho, que provê os fundamentos éticos, morais e conceituais para a atuação dos integrantes do Grupo”.
No processo de internacionalização da Odebrecht, destaca-se, entre outros, aspectos positivos, a capacidade de estimular a internacionalização também de seus fornecedores, incluindo empresas de pequeno e médio portes.
Mas hoje, reveladas na Operação Lava Jato as práticas do Departamento de Operações Estruturadas da Odebrecht, vulgarmente chamado de “departamento da propina” o que dizer da TEO que se apresentava como “a base da cultura da Odebrecht que direciona a ação dos integrantes nos diferentes negócios, países e contextos culturais em que atua”?
Certamente, há muito ainda para admirar na história da empresa familiar criada em 1940 em Salvador e que se tornou uma organização global com a dedicação de gerações de profissionais que empenharam seu talento no desenvolvimento dessa importante empresa brasileira, mas hoje há também um volumoso passivo nacional e internacional produzido pela Odebrecht que dificilmente será quitado.
O que se manchou não foi só a reputação da organização, mas também a imagem do Brasil. Os milhões pagos de multas no Brasil e no exterior não compensarão os danos materiais e morais causados, além das vidas destruídas.
O que se nos coloca hoje é, por um lado, desejar que o aprendizado seja o maior legado dessa vulgar e triste história – ainda não encerrada – protagonizada pela Odebrecht e os muitos coadjuvantes que desprezaram além de suas sociedades a importância do valor intangível da reputação e da confiança ainda importantes para o funcionamento do capitalismo em sua fase global.
Ao mesmo tempo, desenvolver mecanismos mais eficientes de compliance, ampliando seu significado mais estrito de “agir de acordo com uma ordem, um conjunto de regras ou um pedido” (Cambridge English Dictionary) para um entendimento que inclua além de sistemas anticorrupção, o cumprimento de obrigações trabalhistas, ambientais, concorrenciais, fiscais e regulatórias, com tratamento especial ao relacionamento entre o mundo corporativo e o Estado, devendo este último estar em constante processo de acountability, isto é, de transparência de seus atos e permanente prestação de contas aos cidadãos.
E por fim, parece válido propor também a inserção ou fortalecimento de conteúdos de Administração Pública, Teoria da Burocracia, Ciência Política, Sociologia das Organizações, Ética e Sustentabilidade, entre outros, na composição das grades curriculares de cursos de graduação e pós-graduação, não só na área de Administração.
Assim, visando melhor formar jovens profissionais com adequadas ferramentas conceituais para a compreensão da realidade e atuação sobre ela, inviabilizando que projetos mesquinhos estimulados pelo desejo vão de glória, poder e riqueza, possam encontrar terreno para prosperar e inviabilizar a existência e desenvolvimento de sociedades abertas, livres, prósperas e democráticas.
Arnaldo F. Cardoso é especialsita em Relações Internacionais e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Alphaville.
Sobre o Mackenzie
A Universidade Presbiteriana Mackenzie está entre as 100 melhores instituições de ensino da América Latina, segunda a pesquisa QS Quacquarelli Symonds University Rankings, uma organização internacional de pesquisa educacional, que avalia o desempenho de instituições de ensino médio, superior e pós-graduação.